quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Não acostumeis com o que é de hábito...


"Para muitos homens, o mundo parece tão inexplicável como o coelho que um ilusionista retira subitamente de uma cartola até então vazia.

No que diz respeito ao coelho, percebemos claramente que o ilusionista nos enganou. O que pretendemos descobrir é como nos enganou. Quando falamos sobre o mundo, a situação é diferente. Sabemos que o mundo não é pura mentira, uma vez que nós estamos na Terra e somos uma parte do universo. A diferença entre nós e o coelho branco é apenas o fato de o coelho não saber que participa de um truque de magia. Conosco é diferente. Sentimos que somos parte de algo misterioso e gostaríamos de esclarecer de que modo tudo está relacionado.

No que diz respeito ao coelho branco, o melhor é talvez compará-lo com o conjunto do universo. Nós, que vivemos aqui, somos parasitas minúsculos que vivem na pele do coelho. Mas os filósofos procuram subir pelos pêlos finos, de modo a poderem fixar nos olhos o grande ilusionista.

Perdemos durante a infância a capacidade de nos surpreendermos com o mundo. A maior parte dos adultos vê o mundo como qualquer coisa completamente normal. Apesar de todas as questões filosóficas dizerem respeito a todos os homens, nem todos se tornam filósofos. Por diversos motivos, a maior parte está presa de tal forma ao quotidiano que o espanto perante a vida é muito escasso. Descem para a pele do coelho, acomodam-se e permanecem lá em baixo para o resto da vida.

Na extremidade dos pêlos finos nascem todas as crianças humanas. Por isso, podem surpreender-se com a inacreditável arte da magia. Mas à medida que envelhecem, deslizam cada vez mais para o fundo da pelagem do coelho. E permanecem ali. Lá em baixo estão tão confortáveis que nunca mais ousam subir novamente pelos pêlos finos. Poucos se atrevem a fazer a perigosa viagem à procura das fronteiras extremas da existência. Alguns deles perdem-se pelo caminho, mas outros tentam chamar os homens que, bem acomodados em baixo, na pele do coelho, comem e bebem tranquilamente. Mas nenhum deles se interessa pelo ruído que fazem. - Que barulhentos! - dizem. E continuam a falar como até então: - Pode me passar a manteiga? Como estão as ações hoje? Qual é o preço do tomate? Já sabe que a Ivete está grávida de novo?

E você? Se acostumou tão bem ao mundo que este já não te surpreende? Se for seu caso, o perigo está eminente. E por isso ofereço as reflexões que estarão aqui a partir de hoje, para refletirmos juntos. Não quero que pertença à categoria dos apáticos e dos indiferentes nem que adormeça no sono eterno da vida cotidiana. Quero que viva a sua vida de modo consciente."

(Trechos adaptados, retirados do livro "O mundo de Sofia", de Jostein Gaarder)



"Desconfie do mais trivial, na aparência singelo.
E examine, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceite o que é de hábito como coisa natural,

pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,

de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural,

nada deve parecer impossível de mudar."

Bertold Brecht